Kokoró Mekrãgnotire: “A Funai poderia estar do lado dos Kayapó, mas não está”

Integrante do Kabu desde sua fundação, o atual diretor financeiro usa seu conhecimento da tradição  para projetar o futuro: “Somos guerreiros e vamos continuar lutando para defender nosso território"
Kokoró Mekrãgnotire: “A Funai poderia estar do lado dos Kayapó, mas não está”
12.05

Integrante do Kabu desde sua fundação,o atual diretor financeiro do instituto, Kokoró Mekrãgnotire, usa seu conhecimento da tradição  para projetar o futuro: “Somos guerreiros e vamos continuar lutando para defender nosso território de invasões e ameaças”.

Entre os desafios que as 12 aldeias filiadas ao Instituto Kabu enfrentam está a busca pela renovação da condicionante indígena do Plano Básico Ambiental. O PBA inclui todas as condições impostas pelo Ministério Público Federal e pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama)  para a concessão do licenciamento ambiental da BR-163. Foi criado para reduzir os impactos causados pelo asfaltamento da rodovia, cujo traçado passa muito próximo às Terras Indígenas Baú e Menkragnoti e trouxe cidades, desmatamento e mais invasões.

Executado pelo Kabu e fiscalizado pela Funai o PBA foi paralisado em junho de 2020 pelo governo e levou os indígenas a fecharem a BR-163 em protesto, em agosto daquele ano. Sem negociação, o protesto acabou depois de 10 dias, quando o Ministério Público Federal entrou com uma Ação Civil Pública contra a Funai, o DNIT, Ibama e União. Ainda sem decisão judicial, o IK está sem recursos para dar continuidade a projetos que vão do financiamento da coleta da caastanha à construção de casas de farinha.

“A não renovação do PBA até agora (dezembro de 2020) piorou muito para as comunidades. Algumas aldeias não têm casa para armazenar o cumaru, a castanha. Ficou difícil para os técnicos do Kabu, para os indígenas, para todo mundo”, avalia Kokoró.

Ele diz, no entanto, que a disposição das lideranças é ocupar novamente a BR-163 caso o problema não seja resolvido. “Com a BR, aumentou muito o número de invasores – madeireiros, garimpeiros e pescadores ilegais. O desmatamento e a soja já estão chegando na Terra Indígena, o que traz muitos problemas”, completa o diretor financeiro do Kabu.

Em entrevista ao site do Instituto Kabu, Kokoró, que nasceu na aldeia Menkragnotí Velho, fala dos desafios e da história dos Kayapó.

 

Como foi o começo do Instituto Kabu?

Kokoró Mekrãgnotí – Foi difícil, com muita luta e viagens. Não havia internet e a comunicação era feita por rádio ou telefone. Quando as lideranças resolveram montar uma só associação, o Kabu, isso fortaleceu o povo Kayapó. O instituto foi criado para manter a tradição, a cultura e a língua, além de implementar o PBA.

 

O início do PBA, a partir de 2010, foi difícil?

KM – A gente começou do zero. Muitas lideranças perguntavam o que era um projeto porque não sabiam. No início, o PBA era grande, respeitado. Depois, algumas aldeias começaram a criar problemas com atividade ilícita. Associado ao Kabu não pode ter atividade ilícita. Aí três aldeias resolveram sair do Instituto (em 2019) para mexer com garimpeiros, madeireiros. Eles tomaram essa decisão. Agora estamos lutando para renovar o PBA, porque precisamos continuar os projetos.

 

Por que o PBA não foi renovado em 2020?

KM – Ouvi que o valor era muito alto, que tinha de diminuir. A Funai (Fundação Nacional do Índio) começou com essa enrolação.

 

Mas na primeira renovação (em 2014) o valor solicitado era três vezes maior ao anterior e foi concedido.

KM – Não sei o motivo de não renovar agora. Com esse governo e essa presidência da Funai ficou muito difícil. O próprio governo do presidente Jair Bolsonaro quer acabar com o nosso PBA. A não renovação piorou muito para as comunidades.

 

E a relação com a Funai atualmente como está?

KM – A Funai poderia estar do lado dos Kayapó e ajudar, mas não está. A fundação está contra a renovação do PBA. O presidente da Funai (Marcelo Xavier da Silva, delegado da Polícia Federal) colocou a Força Nacional para receber os Kayapó quando fomos para Brasília. Foi a primeira vez que isso aconteceu. Quando vimos, não gostamos, não ficamos contentes. A Funai é a casa dos indígenas, dos Kayapó e de qualquer outra etnia.

 

É possível conciliar o trabalho no Kabu e manter o modo de vida Kayapó?

Kokoró – Mesmo vindo preparado da aldeia, sabendo tradição, canto, dança, caça, algumas coisas esqueci. Sinto falta da aldeia. Quando volto, gosto da pescaria e de fazer perguntas para lideranças e guerreiros mais velhos para saber a história deles. Gosto de defender nosso território para que invasores não o tomem.

 

Como foi seu aprendizado da língua portuguesa?

KM – Português não é fácil de aprender. Voltei a estudar à noite, para fazer o ensino médio, depois que já estava trabalhando no Kabu. Como estava na diretoria, precisava saber bem o português para ajudar os técnicos, as lideranças, para viajar, para ser tradutor. Comecei a estudar quando tinha 16/17 anos, na aldeia do cacique Raoni. Morei em Brasília com Ted Jê Metyktire (filho do cacique que morreu em 2004, aos 32 anos, em acidente na BR-163) em um apartamento com mais quatro indígenas. No começo ficava com vergonha. Quando concluí o ensino médio, em 2018, ajudou muito.

 

Seu contato com o mundo dos kuben (não-índios) começou cedo?

KM – A primeira roupa que vesti ainda era criança. Ganhei do meu tio Bepkum (liderança indígena que viveu entre 1957 e 1975). Ele foi para Brasília e quando voltou disse: “Meri,trouxe um kraico para você”, que quer dizer calção. Foi aí que comecei a me vestir. Depois meu tio Karopi, que foi como um pai adotivo, grande guerreiro, me deu uma calça, um Ki-Chute (misto de tênis e chuteira, produzido no Brasil entre os anos 1970 e 1980) e um meião do Flamengo para jogar bola (Kokoró continua sendo torcedor do Flamengo). No começo tinha vergonha de vestir calça.

 

Você tomou a vacina contra o COVID-19 e se contaminou. Como foi?

KM – Eu tomei a primeira e a segunda dose da vacina. E falei para os parentes tomarem também. Logo depois da segunda dose, peguei Covid e passei muito mal. Precisei ir para o hospital. Meu pulmão ficou 57% comprometido, mas já estou bem recuperado. Os médicos disseram que a vacina me ajudou, evitando que meu caso piorasse ainda mais. No hospital, o atendimento é bom, mas não pode receber nenhuma visita. Os técnicos, enfermeiros, médicos cuidaram bem de mim. Hoje estou recuperado, estou feliz com a minha família.

 

Qual a mensagem que você tem sobre a COVID-19?

KM – Nós, Kayapó, somos muito poucos. Já morreu muito kuben por causa dessa doença. Parentes não tenham medo de tomar vacina. Hoje continuo usando máscara, álcool em gel.

 

E para as jovens lideranças?

KM – Os caciques antigos lutaram muito por nós. Agora estamos em um momento difícil. Se algum de nós terminar a faculdade, cursar Direito, é preciso voltar e ajudar a defender nosso território. Se todo jovem fizer isso, o nome dos Kayapó estará no alto. Morar na cidade é difícil. Tudo é pago, tudo é compra. O cacique Raoni é vivo e ajudou a demarcar o território. A gente não quer perder. E eu estou junto, vou continuar lutando até onde for.